Monday, March 6, 2023

Outro lugar (antigo)

(se calhar, vou-me lembrar das coisas boas e divertidas, dos passeios e companhias, quando, depois deste tempo sem sentido, o silêncio e a solidão forem ainda mais densos)

Passava numa recordação muito recuada: o mapa Hallwag de Londres, com a data de publicação de 1971. Andava-se sempre com ele, ainda hoje a sua exactidão e nomes claros das ruas, me dão a certeza da localização dos lugares e das voltas que se deram. Vou muitas vezes ao google, que mostra as terras, nomes e ruas, e ponho o homenzinho amarelo a andar por elas. Vejo as casas, vejo os sítios, notando que as árvores estão muito mais crescidas, ou desaparecidas, que os prédios de que me lembro estão transformados, que as lojas têm outros destinos/destinatários e nomes. Mas é curioso sair, a pé dos olhos, da estação de Earl's Court, andar para a direita e encontrar os Boot's, o Burger King onde F. e M. trabalharam, virar e encontrar Earl's Court Square, os três quarteirões vitorianos onde vivemos, o Portuguese Empire, como nos chamava Mr. Ware, o dono do hotel. Ainda lá está o marco do correio vermelho onde se punham as cartas para Portugal. Numa fotografia, está a F. sentada em cima dele! Vivíamos abaixo da rua, entre o pó, os móveis antigos, a cave labiríntica, a cozinha escura onde a chefe cozinhava aos domingos, inevitavelmente frango assado, a sala velhíssima da televisão com o sofá desconjuntado das noites de filmes e séries inglesas, e a "boiling room". Mas tudo isso seriam outras das "histórias", de trabalho/escola, diversas gentes, cruzamentos imprevisíves.

Earl's Court Square


O que se reconhece de ainda subsistir por casa


Isto porque tentei imaginar o que foi, umas semanas depois de estar alojados e a trabalhar na casa da Mrs. Smith, em Hampstead, - by the way: a artista Doreen Mantle ainda é viva, tem 96??? anos e o que eu poderia recordar de tudo aquilo e foram apenas 1/2 meses... - ter ido visitar os nossos amigos e jantar com os portugueses, à noite. Saímos para o metro em Earl's Court, devia ser a District Line - gostaria de poder percorrer agora na memória as estações e as horas - e não se reparou que era perto da meia noite e o metro ia fechando. A certa altura da viagem, "saímos, não saímos", sai o M. e fico eu dentro da carruagem! Pensar rapidamente, entre lugares e símbolos. Saí "na porta ainda aberta" de Edgware Road. Felizmente, foi o que o meu acompanhante anteviu e andou pela avenida adiante até chegar à próxima saída de estação, onde estava eu.

Já bem tarde, olhando o mapa. Só uma solução à vista e de noite, com o parco orçamento nem pensar em apanhar um "cab"...: seguir para norte, a pé, rumo a Hampstead Heath. Olho agora o caminho imenso, Edgware Road, Maida Vale, Finchley Road e algures inflectindo para Hampstead Heath, tentando encontrar nomes conhecidos e, finalmente, Frognal!

Escusado dizer que se entrou pé ante pé. E mal se dormiu: que às 7h da manhã sem falhas, tinha que estar alerta, ter a mesa posta, o ovo cozido 3 minutos contados pelo relógio, as torradas e demais artifícios para o Mr. Smith. E logo a seguir o chá e a toranja, devidamente descascada, para Mrs. Smith.

... Não tinha piada nenhuma! mas a identidade conjuga os movimentos de agora: nunca se vai dormir sem ter posto a mesa do pequeno almoço, em casa ou onde estivermos alojados, sejam que horas da noite sejam. E como somos todos animais de hábitos! durante muitos anos se fez aqui, com família ou amigos, o célebre "pequeno almoço à inglesa".

Sendo que a maior parte das fotografias estão desfocadas, mal tiradas, quase inaproveitáveis e ainda  mostrando gente que se pode identificar passados 52 anos!, não fora eu uma mulher de imagens e visões únicas, "preciosas", ficam as possíveis e alguns marcos de passado.

Marble Arch

Passeio no Tamisa




 Albert Bridge

Tive, felizmente, o gosto de fazer estes percursos já no corrente século! E no fundo de mim lateja a vontade de os tornar a ver, outra vez, com outros olhos, revendo outros detalhes, outras verdades.

 

1 comment:

M. said...

Li-te com comoção. Traz-nos a vida coisas destas de nunca esquecer. E tão bem expressas elas foram neste teu post de hoje. Ouso chamar-lhe "O requinte da memória".