Saturday, March 11, 2023

Outro lugar (antigo) III

Fotografias à sorte, tiradas nos passeios que dávamos pela cidade. Trabalhávamos das 7h da manhã até às 2 ou 3h da tarde. Dois dias de permanências em fins de tarde, um dia de folga. 5ªs feiras as lojas estavam abertas até às 8h da noite. Era nesses dias em que se andava por todo o lado, Holland Park, Kensington, Portobello, Camden, Marble Arch, Oxford Street, Sloane Square, King's Road, Regent Street, Piccadilly, Soho, Tottenham Court Road, aqui se via o único arranha céus do centro da cidade, completamente deserto. Muita rodagem a pé e muitas roads. Há lojas e lugares de que me lembro os nomes, ainda hoje. Faltam-me os museus onde conheci ao vivo os meus pintores e escultores preferidos; e o British Museum onde fomos, tenho a certeza, e donde não passámos da primeira ou segunda sala, tal a quantidade de coisas para ver! Aprendi, mas muito mais tarde, a estudar percursos e procurar para ver apenas os lugares e exposições que me interessavam.

E, é claro, os parques, os imensos espaços que são um espelho dessa cidade tão multi-facetada. Não se andava um quilómetro que não se encontrasse um parque, árvores, alamedas, relva, canteiros de flores, bancos convidativos. De repente, estava-se fora das ruas, do trânsito, das pessoas. É a cidade de harmonia, de confusão e paz-perto, que recordo; e foi essa que tentei rever e percorri, sempre, nas diversas vezes que lá fui depois.

Aqui em St. James Park

Apanhados no "render da guarda" por acaso...





Uma nota prosaica no devaneio (aqui) da cidade de Londres. Será que as cidades sonhadas têm uma outra qualidade que não têm as que conhecemos bem e onde vivemos? É a idade, o improviso, a novidade? A diferença da realidade ao sonho. De como esses anos em Portugal eram abafados e atrasados: ali conhecemos outros mundos, falamos e ouvimos pessoas de todos os continentes e países, vimos filmes que ainda nem se sonhava ver cá, jornais e notícias, livros, exposições. Comemos comida do Vietnam, da Índia, de Itália, de Grécia, outros sabores diferentes. Os únicos livros que se compraram sobre a verdade da nossa guerra colonial são ingleses. Quando falávamos de Portugal confundiam-nos com Espanha. Deste nosso país não existia notícia, lá.

O improviso se vê aqui, nesta última fotografia de que me recordo tão bem: fazer sopa com as folhas verdes que se tiravam da couve-flor, cozinhar arroz como cá. Não me esqueço das dificuldades enormes, do SEF deles, perguntas e exigências... da exploração, do trabalho que nos saía do corpo: mas, mesmo assim, éramos "mais iguais". Acontecia-me encontrar no elevador do hotel, já arranjada para sair e sem a bata, com hóspedes que iniciavam uma conversa (de onde és? o que fazes aqui?). Recordo turistas japoneses de malas sempre bem fechadas, uns blocos pesadíssimos, o mau cheiro dos búlgaros, os chineses deslizantes, os americanos enormes e de língua enrolada: e um de sapatos amarelos de verniz.

Calculo que com o 25 de Abril se voltaria para Portugal mal fosse anunciada a liberdade e a mudança do regime. Mas nunca pensei que viver e permanecer "aqui" fosse melhor, aliás: nunca imaginei que se tornasse tão mau e em tão pouco tempo.

 


Friday, March 10, 2023

Outro lugar (antigo) II

Férias improvisadas em Portugal, no Verão 1972. De comboio, à noite atravessava-se o canal em Dover até à Gare du Nord, com paragem do dia inteiro em Paris, à noite embarcar na Gare d'Austerlitz, um imenso caminho de 3 dias até ao Porto. Outros pormenores há desse tempo e da volta, que não foi sem sobressaltos. Instalados no que iria ser - não o sabíamos - o último ano em Londres. Não sei quando o decidimos mas não foi sem discussão. Sonhos pelo caminho, trabalho, escola, exames, algumas saídas. Algures no tempo, fomos a Windsor, todas as fotos têm gente dentro: lembro-me das torres do castelo e de um edifício-livraria numa esquina, de equilíbrio improvável, muito antigo.

Southampton

Aeroporto de Heathrow
 

Aniversário com postais, flores, bolo com (ainda poucas) velas...e presentes


Ida em grupo jantar a um restaurante chinês (Bayswater?), com a tábua redonda a meio da mesa, que gira para cada um escolher os pratos e partilhar
A decisão de alugar um carro, entre todos-alguns, para ir a uma "ilha", a Isle of Wight. Vejo agora pelo mapa do "ajudante google" o caminho que se fez. Mas o que lembro bem foi a sensação de pânico ao ver os carros e autocarros "ao contrário"; e um lugar em que se parou para o english-breakfast, numa berma da estrada, uma casa típica inglesa encantadora. E os water-cress espalhados pelo prato, agriões muito pequeninos que nunca tinha visto nem comido. Esse vegetal e os cogumelos, em Inglaterra, foram uma novidade que descobri.
 

O mar entre a grande e a pequena ilha

No ferry-boat, a travessia
Esta foi a primeira vez que vimos um submarino!
 


Passeámos: julgava eu que numa "ilha" iria ver barcos e peixe... que de lá viria o "dover sole" que aparecia em quase todas as ementas dos restaurantes. Mas presumo que à parte o "fish and chipps" que vimos e se calhar comemos, o peixe viria de outros lados! Quase sem fotografias

Mas, vistas agora, ainda lá está a Regent Street e algumas casas como esta, com as suas varandas quebradas e características, o tijolo que as aconchega.

 

Wednesday, March 8, 2023

Outro lugar (antigo) I

Estamos já no ano seguinte, 1972. A mesa de um casamento: todos nos vestimos muito bem, bonitos, essas fotografias estão preciosas, de cor e  estilo. O registo civil tinha um ambiente com a solenidade de uma igreja. Sei que o  vestido de M. foi desenhado/inventado por ela e costurado pela mãe, em Portugal e era lindíssimo. Sempre fomos três amigas diferentes mas muito originais, F. tinha partido para um destino incerto e que desconhecíamos. A festa foi improvisada, o mais possível cozinhando à portuguesa, há muitos pormenores curiosos e divertidos ligados a esta comemoração. Lembro-me que abundavam os crisântemos, aqui ligados ao culto dos mortos mas em Londres como outras flores quaisquer, de todas as cores, declinações de brancos, lilás, amarelos, rosa.

No dia seguinte, fomos a Brighton, seria de comboio, andámos no belíssimo Pier vitoriano, apanhámos sol e, pela primeira vez, vimos uma praia sem areia, apenas seixos... Hoje fui procurar imagens actuais e vejo está tudo muito arranjado, até tem uma roda gigante. Mas isso das rodas, dos repuxos, das rotundas, dos passadiços, dos arranha-céus espelhados, das bicicletas e dos cortes de árvores (pensando agora e aqui, sem me estender mais...) é uma moda de aparente modernismo, civilidade e entretimento, em todos os lados. Como se diz agora: "transversal".

E aproveitando o conhecimento que parece mundial... tive agora o gosto de ver melhor a frontaria e interiores deste "Grand" hotel: ali continua, com as suas varandas e decorações Arte Nova, o espaço luminoso, o tipo de ambiente, que dirão pouco moderno e eu acho eficiente e intemporal, comparativamente às luxúrias que vou vendo mesmo cá - por ex. na Foz é mais do dobro -, até nem é muito caro. E é destas lembranças e permanências que "I long for".





"Along Fulham Road" mercado na rua e lojas alternativas e a granel, os talhos com "pigs trotters" e a primeira vez que se encontrou vinho português "Gatão". Onde se comprava louça inglesa no "reject shop" de um grande armazém, andam por aí as peças, pratos, terrinas, travessas - nem tão defeituosas são, apenas umas de desenhos mais pálidos que outras... Para nós, sem ter acesso às lojas chiques, era um gosto.
Já a trabalhar em outro hotel, o Cranley Gardens, um quarto bonito e agradável, virado para um parque. Onde as caras e alguns nomes me surgem do nada. Lembro-me que tinha os dois aquecedores acesos, mesmo debaixo das janelas, e com elas geralmente abertas: sempre gostei disso, conforto e ar puro. Reparo, agora, que foi a primeira e única vez que vivi com vistas para as árvores. Tanto gosto eu de observar as mudanças das estações do ano.

O lugar, a nossa aparelhagem e discos, os nossos livros... Um xadrez das nossas vidas. "The long and winding road, will never disappear"



A vida era bem difícil, seriam extras, mas tenho pena de não ter tirado mais fotografias.


Monday, March 6, 2023

Outro lugar (antigo)

(se calhar, vou-me lembrar das coisas boas e divertidas, dos passeios e companhias, quando, depois deste tempo sem sentido, o silêncio e a solidão forem ainda mais densos)

Passava numa recordação muito recuada: o mapa Hallwag de Londres, com a data de publicação de 1971. Andava-se sempre com ele, ainda hoje a sua exactidão e nomes claros das ruas, me dão a certeza da localização dos lugares e das voltas que se deram. Vou muitas vezes ao google, que mostra as terras, nomes e ruas, e ponho o homenzinho amarelo a andar por elas. Vejo as casas, vejo os sítios, notando que as árvores estão muito mais crescidas, ou desaparecidas, que os prédios de que me lembro estão transformados, que as lojas têm outros destinos/destinatários e nomes. Mas é curioso sair, a pé dos olhos, da estação de Earl's Court, andar para a direita e encontrar os Boot's, o Burger King onde F. e M. trabalharam, virar e encontrar Earl's Court Square, os três quarteirões vitorianos onde vivemos, o Portuguese Empire, como nos chamava Mr. Ware, o dono do hotel. Ainda lá está o marco do correio vermelho onde se punham as cartas para Portugal. Numa fotografia, está a F. sentada em cima dele! Vivíamos abaixo da rua, entre o pó, os móveis antigos, a cave labiríntica, a cozinha escura onde a chefe cozinhava aos domingos, inevitavelmente frango assado, a sala velhíssima da televisão com o sofá desconjuntado das noites de filmes e séries inglesas, e a "boiling room". Mas tudo isso seriam outras das "histórias", de trabalho/escola, diversas gentes, cruzamentos imprevisíves.

Earl's Court Square


O que se reconhece de ainda subsistir por casa


Isto porque tentei imaginar o que foi, umas semanas depois de estar alojados e a trabalhar na casa da Mrs. Smith, em Hampstead, - by the way: a artista Doreen Mantle ainda é viva, tem 96??? anos e o que eu poderia recordar de tudo aquilo e foram apenas 1/2 meses... - ter ido visitar os nossos amigos e jantar com os portugueses, à noite. Saímos para o metro em Earl's Court, devia ser a District Line - gostaria de poder percorrer agora na memória as estações e as horas - e não se reparou que era perto da meia noite e o metro ia fechando. A certa altura da viagem, "saímos, não saímos", sai o M. e fico eu dentro da carruagem! Pensar rapidamente, entre lugares e símbolos. Saí "na porta ainda aberta" de Edgware Road. Felizmente, foi o que o meu acompanhante anteviu e andou pela avenida adiante até chegar à próxima saída de estação, onde estava eu.

Já bem tarde, olhando o mapa. Só uma solução à vista e de noite, com o parco orçamento nem pensar em apanhar um "cab"...: seguir para norte, a pé, rumo a Hampstead Heath. Olho agora o caminho imenso, Edgware Road, Maida Vale, Finchley Road e algures inflectindo para Hampstead Heath, tentando encontrar nomes conhecidos e, finalmente, Frognal!

Escusado dizer que se entrou pé ante pé. E mal se dormiu: que às 7h da manhã sem falhas, tinha que estar alerta, ter a mesa posta, o ovo cozido 3 minutos contados pelo relógio, as torradas e demais artifícios para o Mr. Smith. E logo a seguir o chá e a toranja, devidamente descascada, para Mrs. Smith.

... Não tinha piada nenhuma! mas a identidade conjuga os movimentos de agora: nunca se vai dormir sem ter posto a mesa do pequeno almoço, em casa ou onde estivermos alojados, sejam que horas da noite sejam. E como somos todos animais de hábitos! durante muitos anos se fez aqui, com família ou amigos, o célebre "pequeno almoço à inglesa".

Sendo que a maior parte das fotografias estão desfocadas, mal tiradas, quase inaproveitáveis e ainda  mostrando gente que se pode identificar passados 52 anos!, não fora eu uma mulher de imagens e visões únicas, "preciosas", ficam as possíveis e alguns marcos de passado.

Marble Arch

Passeio no Tamisa




 Albert Bridge

Tive, felizmente, o gosto de fazer estes percursos já no corrente século! E no fundo de mim lateja a vontade de os tornar a ver, outra vez, com outros olhos, revendo outros detalhes, outras verdades.

 

Thursday, March 2, 2023

Quando...

... o pensamento larga-se e alarga-me como a nuvem a correr. Uma palavra, uma imagem, um papel.

Ah! se eu tivesse um muro. E esse muro fosse de pedra, tivesse uma hera trepadeira e hidrângeas azuis na faixa de terra abaixo. Uma argola antiga dos cavalos que houvera e onde poderia perdurar uma "casinha de pássaros". A seguir um pátio onde as ervas selvagens e inesperadas alegrassem a calçada tosca. Canteiros com alfazema, rosas e outras flores em maciço avulso. Duas japoneiras verdes e brilhantes para se enfeitarem no Inverno. Um nicho de bambus. Coisa pequena, de verde e cores inesperadas. Uma estufa virada ao sol onde caberiam as fotografias, os quadros e algumas pedras. A casa branca e simples com a porta e as janelas pintadas de azul. Uma entrada ampla para parar os pés e os casacos, antes da cozinha com janela e uma mesa grande de madeira. A sala de repouso, com os sofás das noites, diz-se "de estar", logo a seguir. O escritório de duas janelas viradas para o verde, com todas as estantes e todos os livros, uma secretária cheia de gavetas. Um corredor largo com armários em vidro e as mil recordações repostas. Os quartos podiam ser quase monásticos, apenas todas as coisas no sítio em que preciso delas. As tralhas-arrumos na garagem-cave. Mas, absolutamente necessário, um sótão para espreitar o poente e as estrelas.

Tudo isto, apenas visto este muro:

As fugas de folhear, ler, escrever.

(também foi a propósito de Frognal, Hampstead, lugar e assuntos que ficarão para outro click recordatório, visto que faço deste lugar uma espécie de solitário "parlatório")