Thursday, October 27, 2022

Um dia bom

...Era um dia bom para ter ficado. O tempo tépido, o modo dele, a limpidez das manhãs e as cores das tardes. Um vagar que se transforma em mil arrumações, uma azáfama que se quer esquecer, na ida e na vinda. Os derradeiros olhares do Verão que ali se estendeu pelo mês do Outono dentro. Já se recolhiam as palhotas e se podia olhar o mar de frente, sem cães ou gente atrevida.

Uns dias últimos 

Uma espécie de "despedir", comendo wraps inventados, na varanda. Este ano o vento não nos sobressaltou tanto como o costume, e pudemos fazê-lo algumas vezes, do modo que se gosta, a olhar-olhar. Agora, na janela da cidade, onde vejo as corridas dos carros em frente no anoitecer de fitas e luzes baralhadas, nos sons ameaçadores das buzinas e das sirenes, sei do imenso privilégio que foi fazer estas coisas simples. 


 

Surgiu-me (e parece não ter nada a ver com isto!) uma bela agenda de Londres, da Biba, em Kensington, 1973, e lá volto atrás:


O que seria tão primordial ter conseguido, ter lutado por... e eu não sabia: espaço, horizonte, "lugar" outro, possibilidade de "mudar". Ou cumprir o que sentia: you can make anything out of nothing!

Fomos jantar a Cabanas, pouco se saiu nesses dias e este foi um apelo repentino e saudosista, embora sabendo que há sempre tanto movimento, tantos turistas na beira água,

assim escolheu-se um lugar mais interior que conhecemos, um restaurante sem esplanada: mas passeámos pela beira da ria, tão "fermosa" sempre, e comemos peixe-galo, peixe espada, provando a sopa de peixe que ainda não se tinha comido nesta época

 

Não quis pedir este prato, este pão recheado de açorda de marisco: guardei-o em lembrança!


E a noite escoou-se na fluidez das águas, no movimento de dança dos barcos. Penso sempre que estes lugares são muito especiais, como o Douro, ou outros de personalidade frágil e vincada: qualquer anomalia sintética introduzida pelos homens, arrivismos, alterações, culturas intensivas da moda, coisas de segredos monetários e sem planeamento nem fiscalização, comprometem o equilíbrio daquela natureza.

Até sempre.


Monday, September 12, 2022

De saída

Restringida na opacidade das coisas e pessoas que não mudam.

*****

Pelo dourado dos dias

e os passos abafados do Outono,

o descanso. A ânsia dele.


No vidro líquido do fim do dia, soltam-se as aves.

Azul sem fronteiras e transparente.

 

Wednesday, July 27, 2022

Da coincidência

Há ocasiões em que tudo parece conjugar-se para um estado de caos. E preocupação acrescida. 

O mundo perigoso, o "lá fora". Cá dentro do país uma desorganização de direitos e deveres.

O lugar. Várias gruas e várias obras ao mesmo tempo, um barulho constante, cargas e descargas, explosões ou sons semelhantes, pó, blocos de pedra brutos e enormes camiões que entopem as ruas. Estamos sujeitos a horários, eu e todos os vizinhos, para abrir as janelas ou estender a roupa. Ansiamos pela noite.

Neste tempo de tanto calor e ansiedade é uma coincidência penosa que me desgasta e desassossega. Está para durar meses. Fecho tudo e os olhos.


Wednesday, June 15, 2022

As crianças, os pequenos seres

Porque se me inclina o coração para as crianças, os seus pézinhos de futuro. As aves, as suas asas a nascer, os seus vôos, estive uns largos minutos à espera de ver o "biberão" destas pequenas andorinhas. 

Tenho-as espreitado todos os dias. Brevemente sairão pelo azul e a nuvem, ganharão força para as viagens. Irão revolteando nos céus estrangeiros, receberão outros olhares interessados?



Que mundos e horizontes contarão?


Monday, March 28, 2022

O Ursinho

Sempre o via no quarto do filho. Tem uma história, lembrança, como tantas coisas e objectos cá de casa.

Antes do Natal de 79 ou ainda em 78? Queria comprar um "urso com ar feliz". Todos os que vi tinham um ar feroz e eu queria-o feliz. Dei voltas pelos bazares conhecidos, assim se chamavam as lojas de brinquedos (não havia centros comerciais ou supermercados de prateleiras imensas). Um dos colegas-amigos levou-me um fim de tarde, de carro, ao Bazar Paris, em Sá da Bandeira. E vi-o. Amarelo, alegre, quase do tamanho de um bebé, tipo "deita-te aqui comigo".

(agora os animais são enormes!)

Há-de haver uma fotografia qualquer algures onde estejam esse e outros brinquedos, muitos livros, uma baleia florida, um xilofone, um piano, animais em miniatura, um cavalinho de balançar... Algumas coisas guardei - serão inúteis.


Lavei-o bem há 5 anos, convencida que seria apreciado também passados 4 décadas. Solitário ficou anos, como enfeite e lembrança de que (eu) não queria separar-me. Hoje vi a imagem dele e do neto de uma pessoa conhecida, num telemóvel: dei-o a um outro menino (agora os nomes dos meninos são diferentes, este tem um nome "do Brasil"). 

Pedi à avó-outra para me fotografar a manta e o "ursinho" para recordar: há tantos anos que aqui ficaram, no canto do meu estimado filho! Porque há coisas intemporais.



Saturday, March 12, 2022

Do outro lado do Tejo

Estes enredos, daqui para ali. Só mesmo a memória, cultivá-la, à saudade com raízes antigas, me prendem a certos lugares, a certas pessoas. Vejo-as hoje como há décadas. Andava, portanto, eu a "soltar" outras coisas, quando me aparece a casa, as cores que me são tão conhecidas. As jarras da avó, os pratos antigos, os esmaltes, as caixas, os tecidos, os livros, as fotografias de outras épocas. Os móveis comprados com risos e restauros "ad hoc". 

(foste como um arco-íris na minha juventude)


A personalidade da minha amiga especial, os dedos esguios que tão bem conheço, as pontas levantadas numa elegância natural nela. Como o carácter, fechado, de riso aberto ou ironia contundente. Ontem vi um filme interessante, sobre três mulheres, amigas de décadas, que se juntam. Lembrei-me, de novo, do que haveria a dizer entre nós, dos amores e desamores, dos percursos no tempo que nos separou.

Coisas dessas, boas para falar e pensar num dia de tanta chuva.


Friday, February 18, 2022

Os sentimentos: Ausência

Ou não-presença.
As letras das canções muiiito antigas prendem-se-me ou enredam-se-me no pensamento. A propósito de nada. Como por exemplo, "Aquela janela virada p'ró mar", voltam quase as letras completas, é incrível, nem sabia que as tinha fixado. Porque até nem gostava dessas letras, desses fados ou canções. Andei décadas sem me lembrar delas. 

Esta, que não vem "nada" a propósito (o propósito da cantiga era outro), fez-me pensar na ausência da menina a quem tanto quero e de quem tanto sinto a falta:

Tenho ciúmes das pedras que tu pisas
Do ar que tu respiras
E até das próprias brisas
Tenho ciúmes do sol, da lua cheia
De tudo o que te toca
Da luz que te rodeia
Dos próprios sonhos que tu idealizas
Tenho ciúmes
Das pedras que tu pisa
s

Não parece fácil, transformar o ciúme na falta que sinto: vontade-de-presença. Mas é o que sinto apenas por não estar.

Tudo o que diz, tudo o que faz, tudo o que olha. E eu não estou.



 

Tuesday, January 11, 2022

Aniversário

Relembrando. E como "eu mesma" não podia tirar fotografias, temos poucas. A primeira noite do resto das nossas vidas, com filho:

Estas ao acaso, pelos olhos azuis e pelos cabelos de caracóis louros. 44 anos em 2022.


 

Não fomos notícia mas a vida nunca mais é igual, isso eu sei. 

Parabéns a nós os três, pai, mãe e filho. E à menina que nos continua.