Por alturas (ou antes) deste casamento
(A Alice, já a vi aqui a viver tão perto, ou ela ou a filha, das coincidências e cruzamentos da vida minha. Da Marietinha, não sei, emprestava-me livros e tinha um primo bonito, o Zé; lembro-me é da mãe que dava injecções, a Noeminha, mulher grande e enfermeira no Hospital, de quem eu tinha muito medo. Do Basílio, sei que deixou um filho loiro e fugiu para França, nunca mais se soube dele. A noiva, ainda hoje me chama pelo diminutivo de criança. Visita e limpa a campa da amiga, a minha mãe.)
Isto porque as mudanças.
Um guarda-vestidos da Vitorinha, juntamente com uma cómoda, deveriam ser os seus únicos móveis de casamento, nos anos 20. Lugar de tudo (pouco) o que era de guardar, de estimar e
não mexer. Assim a boneca espanhola que dizia "mamã" e era maior que eu, revirava os olhos e tinha caracóis. Uma bolsa de missangas, tons de verde, rosa, linda (já vi do género em museus), com fecho de tartaruga. O meu conjunto de baptizado. Cartas do avô, escritas com tinta verde, alguma colcha ou toalha das festas raras.
Para abrir o gavetão de baixo onde se enterravam essas preciosidades, o meu esforço era enorme, de tão pequena ainda. Em cima do guarda vestidos, e quando sózinha conseguia pôr um banco em cima duma cadeira, outros tesouros alimentavam os meus dias: uma pequena escrivaninha portátil, com tinteiros de tinta anil, seca, e que fechava com uma cobertura corrediça de pequenas ripas de madeira, postais empoeirados da guerra 14/18 (não sei quem lá esteve), embrulhos de coisas de esconder, livros. Insisti com a minha mãe para que não se desfizesse dele, uns cem anos nos juntavam no tempo que entre nós, as mulheres da casa, fez um arco.
Eu sou unicamente a ponta solta dele.
O presente é tão precário e há tanta gente que precisa...
Dei-o para o quarto de uma adolescente que o modernizou a seu gosto.
Saudades, avó, de quando a vida toda nos cabia num simples móvel.